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Os semeadores: Cícero e Sócrates

O Padre Vieira (Lisboa, 1.608 – Salvador, 1.697) iniciou o seu mais conhecido sermão invocando palavras sagradas para reclamar da política de Lisboa. Vieira queria manter-se na Europa, no serviço diplomático de Portugal e estava sendo deslocado para o Brasil. Quem poderia entender, naquele tempo, os seus inesquecíveis Sermões em Salvador?   As palavras primeiras do sermão são em latim: “ecce exiit qui seminat seminare”, ou seja, “eis que saiu o semeador a semear”. 

Vieira alargava o texto para diplomaticamente atacar a política lisboeta. Há uns semeadores que saem a semear (no caso ele mesmo) e há outros que semeiam sem sair (aqueles outros que permaneceriam na corte do rei de Portugal). 

É possível arrastar a queixa de Vieira para os nossos também terríveis tempos que estão a exigir as letras de algum grande escritor para gravar nas pedras da memória o horror que desabou sobre os corpos e sobre as almas. Mesmo para aqueles que tenham que sair para semear. 

Tenho na memória a figura de dois grandes amigos que não só saíram a semear como semearam sem sair. Suas figuras ficaram gravadas na memória dos meus dias. Refiro-me a Cícero Lana e a Sócrates Brasileiro. 


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O mestre Cícero tanto saia a semear como semeava sem sair. Era funcionário da Companhia de Eletricidade. Pela noite dava aula de inglês e, quando o tempo sobrava, dirigia-se à única cadeia de Ribeirão Preto para pregar as palavras de sua religião aos presos ali condenados. 

Cícero estava certo de que a sua caminhada deveria e merecia ser extensa. Naqueles velhos tempos percorreu o interior brasileiro, em busca de conhecer nossas florestas e seus habitantes. Teve então contato com os militares então liderados pelo Marechal Rondon. 

Outras vezes, acompanhou seus amigos em viagens para os Estados Unidos. É escusado dizer que os amigos não falavam e nada entendiam da língua americana. O professor fazia às vezes de ponte entre os visitantes e os visitados. 

E o Sócrates Brasileiro que também saiu a semear como semeou sem sair. Num desses dias, viajando para São Paulo, conheci um antigo jogador que foi iniciado pelo Botafogo de Ribeirão Preto e encerrou sua jornada no Corintians Paulista. Teve breve, mas inesquecível convivência com Sócrates Brasileiro. 

Durante a nossa viagem falou-me da República Democrática que Sócrates Brasileiro implantou na pátria corintiana. Foi um sucesso, disse-me o companheiro de viagem. 

Os times de futebol davam aos seus jogadores o “bicho”, ou seja, um prêmio em dinheiro toda vez que saíssem do campo como vencedores. O “bicho”, portanto, era prêmio apenas para os jogadores envolvidos pessoalmente na disputa vitoriosa. Não mais. 

Na implantação da República Democrática corintiana, Sócrates Brasileiro reordenou o pagamento do “bicho” que passou a ser dividido entre os jogadores titulares, suplentes alcançando até mesmo os servidores da equipe como as “cozinheiras” (sic). O grande mestre esclarecia que aquela importância em dinheiro era conquistada por todos os participantes da disputa, daí também porque as necessidades deveriam e poderiam ser satisfeitas em favor de todos e de todas.   

Tanto Cícero Lana como Sócrates Brasileiro romperam com a sua formação as barreiras do individualismo, enxergando em cada um dos participantes de sua convivência, um marco da universalidade da civilização humana. 

É possível tomar as palavras de Vieira não mais como o registro de sua possível amargura. Cícero Lana e Sócrates Brasileiro demonstraram decisivamente que os semeadores exemplares devem sair a semear como semeiam sem sair.  

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