Igualdade, paridade, participação na Justiça
Alfredo Attié (Presidente da Academia Paulista de Direito)
Para que haja uma ação ou política afirmativa ou de compensação é necessário reconhecer uma situação de desigualdade e demonstrar que houve ou há discriminação.
Realmente, no passado, havia forte discriminação em relação a mulheres, nos concursos de ingresso na magistratura e em outras profissões jurídicas públicas, assim como no universo da advocacia privada.
Na magistratura estadual paulista, isso parece ter começado a ser superado há mais de trinta e cinco ou trinta e seis anos – desde 1988/89 – quando o número de mulheres aprovadas nos concursos públicos passou a ser igual ao de homens. Nesse espaço de tempo longo, já houve uma modificação nos quadros da magistratura estadual paulista, o que pode ser testemunhado diariamente pelas advogadas e advogados que vão aos fóruns ou realizam despachos virtuais. Trinta anos, teoricamente, é o tempo de duração de uma carreira na magistratura e em outras profissões jurídicas, pelo que se pode concluir que essa renovação efetivamente ocorreu.
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Nas promoções internas, de entrância a entrância, em primeiro grau, não há como existir discriminação, já que o critério é sempre a antiguidade – mesmo o mérito se transforma, na prática, em antiguidade. Também não há, desde 1988, como existir discriminação nas remoções e promoções ao tribunal. Se não está presente a discriminação, não há como estabelecer um critério que venha a provocar discriminação. Não há como preterir uma mulher numa promoção, a não ser que se cometa uma ilegalidade grave, que desobedeça ao princípio do juiz natural, estabelecido na Constituição. Se houve ou há uma ilegalidade, conjuntural ou estrutural, o remédio jurídico também é constitucional. Digamos que tenha havido uma mudança ilícita de listas de antiguidade – publicadas ano a ano -, a título de exemplo. Nesse caso, os órgãos de controle têm de agir, para impedir que prevaleça, para o benefício de alguns, a subversão danosa para a sociedade do princípio do direito natural. Nesse caso, porém, o prejuízo não diz respeito a gênero, mas ao conjunto de juízes e juízas, pelo que um critério como ação afirmativa não serve para corrigir esse hipotético rearranjo na ordem de promoções.
A discriminação que permanece, fortemente, nas carreiras jurídicas públicas e na própria advocacia privada dá-se em relação a mulheres e homens negros, pela dificuldade de acesso ao estudo jurídico, aos concursos públicos e à competição privada. Há, da mesma forma, em relação a homens e mulheres indígenas e lgtbqia+, assim como em relação a pessoas com deficiência. Nesses casos, deveria haver uma firme política afirmativa, verdadeiramente compensatória, fixada em lei, a partir da Constituição. Isso mudaria a configuração das profissões jurídicas públicas e traria benefício enorme para o País, para o direito, sua teoria e sua prática, e para a justiça, além de fazer justiça em face de desigualdades e violências históricas.
Em todos os casos, mesmo no de mulheres, há necessidade de pensar e se submeter ao princípio democrático e ao estado de direito. A questão mais séria, portanto, diz respeito à competência do CNJ para tomar decisões como essa e muitas outras, que extrapolam a competência constitucional de um órgão interno do Judiciário. Há questões, em meu modo de ver, mais importantes e que levariam a uma transformação efetiva da justiça e do papel do judiciário e das funções essenciais à Justiça. Assim, por que não há participação da sociedade nos órgãos de direção e de controle dos vários tribunais? Por que não há participação de juízes/juízas de primeiro grau nesses órgãos de direção e controle dos tribunais – a exemplo do que ocorre – mesmo que maneira imperfeita – no próprio CNJ e no CNMP? Por que não há o aumento de competência de órgãos de participação da sociedade, no julgamento de maior número de causas, no cível e no crime? Júris, juízes/as leigos/as, órgãos colegiados, com membros de outras profissões, outras experiências?
Aparentemente, os órgãos superiores e o mainstream jurídico não se preocupam com questões realmente importantes, como discriminações e desigualdades estruturais, e se perdem em vias de mão única, sem que haja um macroplanejamento, uma preocupação verdadeiramente político-jurídica. O que vemos, lamentavelmente, são pequenos projetos, sem relação entre si, que geram decisões sem sopesamento de causas nem de consequências. Isso leva ao predomínio não de políticas públicas, mas de palavras de ordem, que levam a formulação de políticas fragmentárias, que tendem a levar à inação da justiça, ao comprometimento das melhores intenções e iniciativas.
O que a lei poderia fazer, para dar alguns exemplos, seria estabelecer critérios de paridade – não apenas de gênero, mas tendo em conta as desigualdades estruturais que referi – nos órgãos de direção e de controle dos tribunais; votação de todos os juízes e juízas para esses órgãos, ampliação dos cargos eletivos nos órgãos especiais (até mesmo o fim dos cargos de antiguidade em tais estruturas), presença de representantes da sociedade civil nesses órgãos; presença de cidadãos e cidadãs nos juizados cíveis e criminais, ampliação de júris; diminuição da idade de aposentadoria compulsória e designação de juízes/as sêniores para exercer funções de julgamento e orientação, após a aposentadoria, permitindo a mudança mais rápida dos tribunais e juízos, a oxigenação da cultura, a atualização.
Penso que é preciso pensar de modo mais criativo e consequente, seriamente, em políticas de visão mais ampla e de compreensão mais profunda. Qual o espaço e o lugar das periferias na justiça? Apenas como rés, objetos de violência e preconceito? Isso precisa mudar. Não adianta pensar em circular o poder nas mãos da elite. Mais reflexão a partir dos exemplos de Marielle Franco, de líderes indígenas, homes e mulheres negros, políticas pensadas e decididas pela sociedade, com a participação intensa de movimentos sociais, de coletivos, de uma representação que, é bom que se saliente, é cada vez mais feminina. Pensa-se muito nos órgãos que concentram o poder, sem questionar se devem continuar a concentrar esse poder, numa ordem democrática de verdade. Mudar a cultura é pensar no cotidiano da justiça e das injustiças que são cometidas.