República de Chinelos
O Presidente da República já tinha trinta anos de biografia, como parlamentar, absolutamente inoperante, quando foi eleito. Ele se preocupava desde sua vida de ex-capitão com a remuneração dos militares, fazendo deles seu eleitorado cativo, independentemente de ter ele ameaçado explodir quartéis e receber da Comissão de Justificação do Exército condenação unânime. Defendeu a tortura, como defende, defendeu o maior torturador recentemente falecido, como defende. Ofendeu mulheres, falando de estupro. Ofendeu indígenas. Ofendeu auxiliares, ofendeu generais, ofendeu chefe de estado e a mulher do chefe do Estado. Jamais defendeu uma política de consenso, como é a finalidade do debate democrático. Sua especialidade é ruptura, e joga sempre a culpa nos outros. Quer destruir a legitimidade do Poder cuja função é declarar o limite imposto pela Constituição, que é o Supremo Tribunal Federal. Ele não dedica tempo algum para governar. E quem não governa, desgoverna. As mesmas urnas que sempre o elegeram agora são colocadas sob suspeição, por conveniência. Nesse estratagema, gerar pesquisas de opinião que lhe dariam a vitória é um ingrediente necessário, como preparação, para tentativa de golpe, se derrotado.
Mas a prática como Presidente mereceu, em análise absolutamente original, dois ensaios que focalizam a simbologia do poder e a mistura do corpo físico do representante da maioria que o elegeu e a função da qual emerge a representação coletiva de um país. A simbologia dos gestos e o sentido das palavras.
O título dessa obra de Luciana Villas Bôas, Editora 34, é sugestivo, pois, é o mesmo do primeiro ensaio “A República de chinelos: Bolsonaro e o desmonte da representação”, enquanto o título do segundo é “As armas sobre a Urna”. O primeiro é sugerido pela foto dele e dos ministros, na qual ele aparece de chinelos, paletó chinfrim e camisa do palmeiras, hostilizando o protocolo. Mas a mistura do espaço público e do privado, ela recolheu da live filmada na área de serviço da residência dele, projetada num telão da Avenida Paulista, para euforia de seguidores. O segundo ensaio constitui-se de primorosa análise da fotografia veiculada nas redes sociais sobre a urna eletrônica acionada por um cano de revolver, em favor do próprio, nas eleições de 2018. A resposta imediata da oposição foi que se levasse e colocasse um livro sobra a urna. Enquanto o símbolo da violência ataca a intimidade da urna como instância intermediária da representação coletiva, o livro representa a força do argumento e da palavra, a linguagem da institucionalidade e do Estado Democrático de Direito.
Se Luís XIV da França aparece, no retrato pintado por Rigaud em 1701, com as insígnias reais, o manto, o cedro, a coroa, a espada, trazendo na testa o sinal divino da escolha, que ninguém nunca viu, revela nessa magnificência a natureza do seu Poder. Igualmente as vestes de um presidente da democracia representativa não pode aparecer com camiseta de clube de futebol, pois, além do protocolo quebrado, quebra a simbologia de uma representação coletiva, que não se esgota em camisa de clube nenhum. Mas ele já afirmou que Deus foi quem o elegeu. Assim, pode ir a país estrangeiro, para uma Conferência Internacional, e comer pastel na calçada do bar ou restaurante.
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Nessa mistura do privado com o público, o discurso de atacante-mor da república está insuperável, porque ataca o Supremo, primeiro, porque ele é quem declara o limite da atuação do Poder Político, depois porque a função primordial à qual ele disse ser destinatário é a de defender a sua família e seus amigos.
Se o ensaio leva o nome de A República de Chinelos, ficaria também dentro da realidade atual um título assim A República debaixo dos chinelos, pois, até internacionalmente, o país se tornou um pária. Nesse plano o Palácio do Planalto confunde-se com uma caverna misteriosa, que hora por vez recebe a cortina do sigilo conveniente, não obstante a divulgação sobre as cem vezes de visitação dos pastores da corrupção, número esse que permite todas as suposições, inclusive essa do momento da prestação de contas.
As eleições que elegeram o atual Presidente já revelam o risco da democracia, com a sua propaganda de armar a população para salvá-la, quebrando o monopólio da força conferida pela sociedade ao Estado para proteção da sua convivência social e, ainda, no governo, editando trinta e quatro Portarias para armar o Estatuto do Desarmamento. A democracia com a largueza que sempre se expande no tempo e no espaço, pois está ligado ao espírito de transformações e aperfeiçoamentos, deve estar sempre prevenida diante dos riscos nascidos de sua abertura, já que, ora por vez, aparece alguém ou um grupo querendo destruí-la.
Mas como bem apontou Newton Bignotto, no posfácio do livro, citando a lição de Hannah Arendt “…um dos efeitos da implantação de um regime totalitário num país é a fusão das esferas públicas e privadas e a destruição da política em suas dimensões de liberdade e igualdade. Quando isso ocorre, já não basta olhar para os mecanismos institucionais para apreender o sentido dos acontecimentos que arrasam o espaço público”.
O livro não fala da continência à bandeira estrangeira, isolada, na sua primeiríssima visita aos Estados Unidos. Esse gesto militar é o símbolo de respeito dos membros das Forças Armadas à bandeira nacional do Brasil, mas só pode ser lida como ato de submissão aos interesses todos do país visitado.