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Feres Sabino: Juiz como fermento de esperança

A morte ceifou mais um homem extraordinário na simplicidade, no saber de autodidata, que lera os clássicos antes dos dezesseis anos, o que o fez chegar com tamanha densidade de cultura à Faculdade de Direito de Belo Horizonte, hoje Universidade Federal de Minas Gerais. Mas, antes, ele estudou no Colégio do Estado de Ribeirão Preto, famoso na época, e escrevia no jornal local A Cidade.

Fez muitas amizades em Ribeirão Preto e sempre destacava a lembrança do jornalista Luciano Lepera, marxista, deputado estadual cassado antes do golpe de 1964.

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Ouvi falar dele como Juiz de Direito da cidade paulista de José Bonifácio, em meados da década de 1950. Comentava-se o orador que ele era. Declamava “Navio Negreiro”, de Castro Alves. Tinha uma mancha na testa, tão incomum quanto sua sensibilidade, inteligência, cultura humanista, seu caráter reto e limpo. Sentava nos bares, conversava com as pessoas simples como uma delas.

Como Juiz era mesmo fora do padrão. Longe de qualquer formalismo, naquela época em que o Juiz era figura central da cidade. Basta se lembrar de que faculdades de Direito eram pouquíssimas e ninguém imaginaria que o Brasil teria, um dia, mais de mil e cem escolas de Direito.


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Seu período de magistrado na cidade de Rio Claro levou-o à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, inicialmente como ouvinte, depois como professor durante alguns anos. Foi também professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O brilhante advogado, o Procurador do Estado Wadih Aidar Tuma, contou a impressão causada na Vara da Família pela atuação daquele juiz, que gostava de conversar com o casal, dando a impressão equivocada, no início, de que “ele não gostasse de trabalhar”. Nada disso. Era o diálogo da redescoberta do casal que lhe dava, certamente, um sentimento de realização de justiça, quando os reconciliava. Chegavam ansiosos, quiçá indignados consigo e com o outro, para disputar com calma, leveza e sensibilidade do juiz franzino, que tinha aquela mancha visível e forte na testa, a voz mansa, a palavra insinuante de respeito e afeto pelo núcleo familiar ameaçado.

Como Juiz, foi presidente do Tribunal de Alçada Criminal, “onde mais que administrar a Corte batalhou pelos direitos dos réus desassistidos, assegurando que o Estado patrocinasse sua defesa em caso de omissão de advogados, na interposição dos embargos infringentes sempre que havia recurso de apelações, voto vencido em favor dos réus” (Noventa anos. Homenagem a Ranulfo de Melo Freire. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. Texto extraído da coordenação da obra).

Ranulfo nasceu na cidade mineira de Ventania, que depois se chamou e chama Alpinópolis, no dia 4 de abril de 1924. Morre aos 96 anos. Seu inspirado humanismo formado como autodidata era sempre uma luz penetrando o íntimo das pessoas e do tempo.

É um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), juntamente com seu colega de Tribunal Alberto Silva Franco e outros que, em 2013, festejaram solenemente o aniversário de Ranulfo, até com a publicação de um livro. O IBCCRIM se converteu em fonte de irradiação da moderna ciência do direito penal, atento às mutações e particularmente vigilante para qualquer ato político ou governamental violador dos direitos fundamentais do cidadão e da arquitetura da democracia.

Esteve presente em colegiados de defesa dos direitos humanos. Quando assessor na Secretaria da Justiça de José Carlos Dias, representou-a na elaboração do primeiro Convênio com a Ordem dos Advogados, para pagamento dos advogados da assistência judiciária, tendo ao seu lado o procurador Victor Hugo Albernaz, representando a Procuradoria Geral do Estado.

Ele também assinou, como Presidente da Fundação Manoel Pedro Pimentel, em sessão solene realizada em 8 de dezembro de 1999, Dia da Justiça, o protocolo celebrado com a Universidade de Sorocaba no programa denominado Celso Ibson de Syllos, cujo objeto era o das universidades assumirem as penitenciárias como departamento interdisciplinar.

Ranulfo de Melo Freire, silencioso, homem de corpo franzino, fala mansa, era um gigante de alma e espírito, sempre presente nas lutas democráticas de seu tempo.

Sua dignidade fermenta a esperança no mundo.

Assim Ranulfo não foi; ele é.

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